NINO
EM SEU MUNDO DE AMOR - Miguel Arnildo Gomes
Uma
carroça ringia sobre o leito de uma estrada. Entre quatro canzis e sob uma
canga na ponta de um cabeçalho, havia uma junta de bois. Sobre esta carroça
havia um carroceiro que cantava, assoviava e ao estalo de um relho, repontava
os animais a gritar:
-
Vamos, vamos Zebu, encosta, encosta Escalão que o galpão ainda está longe.
Nos declives apertava o breque, juntando as
sapatas e arrastando as rodas; em aclives e planícies soltava o breque,
liberando as sapatas fazendo com que a carroça rodasse livremente.
O
vento norte batia forte nas árvores dobrando os galhos e fazendo-os gemer como
crianças a chorar de medo. As samambaias da margem da estrada pareciam dançar
um balé louco, sob o som de uma orquestra regida por um maestro endoidecido.
Então, como se obedecesse a uma ordem superior, o vento cessou. O mormaço
tornou-se ainda mais intenso e, aos poucos, ao longe, no horizonte nuvens
negras começaram a surgir em um prenúncio de temporal. Nesse momento. o céu
começou a escurecer, o sol desapareceu. Era o sinal mais evidente do que estava
para acontecer. A noite de lua nova rapidamente se aproximava e junto com ela o
furor da tempestade: novamente o vento, agora acompanhado de chuva, granizos
trovões, raios e relâmpagos em todas as direções. Mas, como começou logo o
temporal cessou. O pavor da escuridão era tanto, que quando surgiu uma pequena
claridade, Nino demorou a entender que era a luz de um vaga-lume gigante, a
alojar-se no guizo da ponta da picana, a qual fora colocada em pé e amarrada ao
lado da carroça por um “tento” junto a um fuero.
Através
da luminosidade dos raríssimos relâmpagos que ainda teimavam em riscar o céu à
distância, o carroceiro percebeu um casal de negros, que caminhava em sentido
oposto ao da carroça e, que ao cruzar com Nino não emitiu sequer uma “Boa
Noite”. Era o Hortêncio e Picucha, que seguiam cabisbaixos em direção ao seu
ranchinho. A carroça agora, totalmente, molhada não mais ringia e o carroceiro
voltara a falar com os bois:
-
Vamos, vamos Zebu, encosta, encosta Escalão que o galpão agora está perto e
logo chegaremos.
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O
cavalo rosilho era tratado na estrebaria e vivia fogoso. Ao ser montado
mastigava o freio, levando presa em suas patas grande quantidade de flor branca
e de barba de bode. Quando relinchava,
gingava de um lado para outro da estrada, como se estivesse dançando e ao mesmo
tempo pedindo para ser liberto, afim de que pudesse correr, dar pinotes, saltos
e sumir, o que certamente faria campo a fora, se não fosse a maestria do ginete
que procurava acalmá-lo, passando a mão carinhosamente sobre as crinas e sobre
a anca.
Esse
cavalo, predileto de Nino, pela inquietude e postura, deixava a entender que
estava ciente das intenções de seu amigo adestrador, o qual montado em pelo
puro, sem chicote, estribos, peitoral e montaria, o impedia de disparar, ao
prenão oferecendo ao seu pingo, sequer as mínimas condições de liberdade.
Nino
sempre se considerou um menino privilegiado, apesar de ter nascido em um quase
fim de mundo, onde tudo ao seu redor era tão simples e pacato. Jamais deu
importância a grandiosidades e pompas, sempre aguardando que as coisas
acontecessem naturalmente. A princípio se alimentou apenas do leite materno e,
para ser curado de alguma dorzinha de barriga, davam-lhe chazinhos de puejo,
camomila e funcho. E como o costume na época, o seu cordão umbilical fora
enterrado no quintal, ao pé de uma laranjeira para que ele se criasse viçoso e
um dia viesse produzir bons frutos.
Como
tinha por costume dormir sorrindo com olhos abertos, que segundo a crendice
popular não caracterizava boa coisa, sua mãe Dona Maria, foi aconselhada a
levá-lo imediatamente a uma benzedeira. Lá, Sinhá Belizária após examinar
minuciosamente o nenê, constatou estar o vivente acometido e um mórbido
quebranto, que talvez tivesse sido transmitido, segundo suas próprias palavras:
“Pelos “zóios” da própria madrinha,” o que dado às proporções, seria coisa
muito grave.
A
benzedeira recomendou que retornassem com o nenê durante treze sextas-feiras
seguidas, afim ser benzido e que também fosse colocado durante todo este tempo,
um galho de arruda em uma xícara de água, na cabeceira do berço, o que serviria
para espantar tanto o quebranto, como o “mar oiado”, que perseguia o “entinho”.
Quando
completou um ano de idade, o guri ganhou como presente de aniversário, um belo
cãozinho; era um cusquinho pitoco, de cor amarelada, com uma coleira de pelos
branco no pescoço. Um futuro “guaipéca”, que recebeu o nome carinhoso de
“Regimento”, e que passaria a partir daquele momento, a ser por alguns anos, o
companheiro inseparável do menino.
Nino
começou logo a andar e a falar, e aprendeu a conviver amigavelmente com seus
irmãozinhos e coleguinhas. Vivendo em tal situação, era um menino feliz,
andando com os pés descalços e caminhando todas as manhãs sobre o orvalho, em
contato direto com a natureza.
À
noite maravilhava-se com o clarão da lua,quando esta aparecia, ou com brilho
das estrelas e, até mesmo com a luz dos próprios pirilampos, os quais coloriam
as sombrias noites sem luar. No interior da velha casa a única luminosidade que
podia existir, era a luz dos lampiões a querosene. Nas manhãs de inverno, com
frio intenso, o garoto se deslumbrava sentado em uma banqueta junto ao fogo de
chão, ao ver pela janela o belo panorama que as geadas proporcionavam.
Davam-lhe a impressão de um enorme lençol branco, a cobrir toda a paisagem ali
existente; cercas, galpões, matas, campos e plantações.
Já,
quando setembro chegava, as corticeiras florescidas, pintavam de rubro em toda
sua extensão as várzeas, colorindo ainda mais as belas manhãs primaveris,
naquele rincão perdido do Rio Grande do Sul. Então, o guri ficava se
imaginando.
-
Eu acho que Deus me criou para fazer de mim um eterno sonhador, e irá colocar
em meu mundo só paz, amor, felicidade e poesias.
Em
certo dia, foi o menino agraciado, com um lindo bodoque de borracha de cor
escarlate, material este, contrabandeado da Argentina, e que serviria para
matar passarinhos. Mas, após admirar por demais aquele objeto, usando-o no
pescoço e fazendo dele uma relíquia, aos poucos foi se julgando incapaz de
jogar uma só pedra, contra as indefesas avezinhas. Foi quando aprendeu a
identificar as centenas de variedades, através do canto, tipo, plumagem. Eram
canários, bentevis, caburés, corruíras e andorinhas. Aprendeu a imitar os
cantos e a proteger os pássaros.
Nino
mesmo sem saber ler costumava permanecer por horas a olhar figuras em livros
que pertenciam a seus irmãos mais velhos, quando então se questionava:
“Onde
é que fica este tal oceano atlântico?”
Então, em seguida, concluía estar o oceano
atlântico logo ali, atrás do horizonte. E,dessa forma prometia a sim mesmo:
“Quando
eu crescer, quero construir uma enorme canoa de um tronco de cedro, para poder
navegar por sobre as ondas do oceano, mesmo por mais furiosas que elas sejam.
Quero também ver de perto as grandes baleias e os ferozes tubarões de que tanto
falam.”
Certo
dia seu pai, o Sr. Batista, confidenciou para sua mãe, Dona Maria, em
particular.
- Devemos colocar esse guri em uma escola municipal.
E,
lá se foi Nino feliz da vida, usando uma cesta de palha de trigo enfeitada de
vermelho e azul, para transportar lousa, caderno, lápis de pedra, caneta com
pena e tinteiro, além do livro “Queres Ler” e a merenda. Foi o momento em que
conquistou o “piazito” grandes amizades. Mas, a maior entre todas foi a do
companheiro Pilole.
Apesar
do interesse pela escola e da simpatia conquistada pela professora, seu mundo
preferencial continuou sendo a casa onde morava; os galpões, os potreiros, o
cavalo, as juntas de bois, a carroça, o arado de quatorze polegadas, mas
principalmente os cachorros Ele sempre imaginava que mesmo não falando, os cães
pensavam e raciocinavam o que era o caso de seu velho cãozinho “Regimento”, que
as vezes uivava dormindo. Nino então
comentava para seus irmãozinhos, que seu “cusquinho” estava sonhando e talvez
estivesse lembrando-se de sua infância e das belas namoradinhas que um dia
conquistara.
O
guri andava pelo mato e fazia sapecadas de pinhão juntamente com seus irmãos,
principalmente com o Jorge, quando subiam em árvores frutíferas a fim de
comerem as saborosas frutas nativas: ariticum, cereja, guamirim, pitanga,
guabiroba, guabiju. Mas, quando seu amigo Pilole chegava, ainda o convidava:
-
“Bamo come fruita?”.
A algumas dezenas de metros de sua casa, havia
uma grande touceira de taquara, onde cresciam muitos brotos e por isso era
muito densa, Era onde Nino costumava se esconder, trepado em um antigo cerne de
guajuvira, com a finalidade de fazer suas necessidades fisiológicas. Todos
diziam ser uma atitude normal, e que eram coisas de guri. Porém com o passar do
tempo, cada vez mais se escondia para poder frequentar a “moita”, o que se
comentava que para rapazola, seria uma atitude não condizente. Entretanto,
certo dia enquanto ocupava o local, foi ele já rapaz, surpreendido
repentinamente pelo irmãozinho mais novo, Juquinha, que o interpelou em altos
brados.
-
Não tem vergonha moço, em eu te pegar cagando no bambuzal, justo no dia em que
está completando dezessete anos?
Certo
dia Nino começou a sentir cansaço físico e, aconselhado por sua mãe, Dona Maria
foi ter de novo com a benzedeira, Sinhá Bilizaria. Inicialmente ela festejou
muito sua chegada, e lhe contou que o conhecia desde nenê e que agora tinha o
grato prazer de lhe receber já rapaz taludo, o que viria demonstrar estar cheio
de saúde. Mas, quando ouviu atenciosamente a exclamação do moço, com relação do
que estava sentindo, a benzedeira levou a mão sobre a barriga do rapaz e assim
se pronunciou.
-
“Vancê ta cum a pança munto cricida. Pelo jeito ta tomado de bicha. Facilita
que daqui uns dia vai sarta lumbriga inté pelas tuas venta”.
A
seguir receitou para que ele tomasse durante nove noites consecutivas, antes de
dormir, uma xícara de chá de gervão e comesse durante todo esse tempo, pela
manhã em jejum, sete sementes de abóbora, o que se completaria com benzimentos
durante sete sextas-feiras seguidas antes do pôr do sol.
Como
Nino cumpriu religiosamente todas as dicas fornecidas pela benzedeira, sem
obter melhora alguma, resolveu então por sua livre e espontânea vontade,
procurar um médico. Levantou-se cedo e antes que pintasse a barra do dia, se
dirigiu ao riacho onde tomou um banho com sabão de soda, passando a brilhantina
sobre as melenas, alguma água de cheiro no corpo. Vestiu uma bombacha nova,
“blusa de cacha”, cinto de couro de lontra, botas cano de favo de mel e sobre a
cabeça colocou uma boina. Pegou o cavalo rosilho, encilhou, montou e ainda pela
manhã bem cedo tomou o rumo do povoado. Lá chegando, como é de costume pagou
adiantado sua consulta, para depois ser examinado pelo doutor, que a seguir
exclamou:
-
Hoje não vou receitar remédio algum, mas de preferência amanha bem cedo quando
fores evacuar, peques parte da obra, coloques em uma caixa de fósforo e traga
aqui que quero verificar.
No
dia seguinte, antes do nascer do sol, Nino assim precedeu, vestiu a pilcha,
colocou a encomenda no bolso do paletó, puxou o rosilho e aperou, mais mala de
poncho, guariba vermelho, badana couro de pardo, sendo colocado por baixo do
pelegão uma mala de pano, que serviria para ao cruzar pela venda, trazer entre
outras coisas, alguns quilos de banana. Boleou a perna e em marcha batida
voltou a cortar o trecho.
Ao
cruzar pelo Rio Colorado deu água para seu “flete” e como o passo não estava
dando vau, deu a volta cruzando pela ponte. Nino pensava e falava na sua
intimidade:
“Que
vergonha, eu já moço namorador, estar submetido a este vexame, forçado a levar
fezes para o doutor examinar. Isto é o extremo do ridículo. Tomara que fique só
comigo mesmo, porque se cair na boca do povo e principalmente entre as moças,
para mim vai se tornar exageradamente vergonhoso e eu não terei mais mínimas
condições de dar as caras na sociedade, em bailes então, jamais pensar”.
Ao
chegar novamente no povoado, amarrou o cavalo no galho de um velho cinamomo,
que existia em frente ao consultório. A seguir o médico examinou atenciosamente
o excremento e prescreveu a receita.
Nino
após ingerir por alguns dias o medicamento, voltou a viver a vida em toda sua
plenitude: repontando os bois, apostando alguns cruzeiros em carreira de cancha
reta e, em muitos domingos à tarde correndo atrás de uma bola de couro. Algumas
noites de sábado, ensaiava em ritmo de vaneira e dava seus primeiros passos de
fandangos, ao som de gaita de botão, violão e pandeiro.
E
assim vivia Nino em seu mundo mágico. Segundo comentava-se, o rapaz era um
excelente tocador de bois. Quando falava com os animais, com voz firme e com
desembaraço, algumas vezes assobiava e cantarolava ao mesmo tempo em que
sonhava com coisas grandes e importantes, que um dia poderiam acontecer em seu
futuro. Como, por exemplo, casar-se com Clementina, menina moça em seus dezoito
anos de idade, 1,76 m de altura, 90 cm de quadril e 60 cm de cintura, pela qual
o rapaz se achava tremendamente apaixonado.
Enfim,
tudo havia começado em um domingo do mês de fevereiro de 1963, quando Nino fora
convidado por Alcino, um amigo que era proprietário de um caminhão de
carroceria, utilizado para transportar porcos e cereais e, que naquele dia,
estava sendo fretado para conduzir um time de futebol para um torneio onde
teria a participação de dezenas de outros clubes amadores.
O
referido torneio seria disputado apenas no período da tarde. O percurso a ser
feito era muito extenso, através de estradas de terra empoeiradas. Para isso,
teriam que almoçar antes da hora normal, ali pelas onze horas, e em seguida
tomar o veículo, embarcar o pessoal e cortar o trecho. Nino colocou uma camisa da melhor marca,
paletó esporte, calça e sapatos, isso tudo recentemente adquiridos. Na cabeça
usava um cartola (chapeuzinho preto, com copa alta de forma cilíndrica, que
ainda se encontrava na moda).
Naquela
oportunidade, Nino percorreu o caminho confortavelmente instalado, na cabine,
ao lado do motorista e do presidente do clube. Usava também, o elegante rapaz,
na um par de óculos escuros da marca “Copacabana Luche”.
Durante o trajeto a conversa entre os três
amigos, girava em torno de colheitas, que estariam para acontecer, futebol e
política. Já o presidente do clube, Sr Mario, era o mais falante. Referia-se
com emoção ao tempo em que morou no Rio de Janeiro, época da Segunda Guerra
Mundial, quando fora militar. Comentava também sobre o majestoso carnaval
carioca, das escolas de samba, Mangueira, Favela, Portela entre outras. O Sr
Mário, era um fanático torcedor do flamengo.
Ao
chegarem ao destino, à primeira vista, constatou Nino encontrarem-se em um
verdadeiro Cafundó e de difícil acesso. Um recanto afastado, possivelmente a
cerca de duas dezenas de quilômetros, ou mais, da belíssima e progressista
Sarandi, cidade pela qual já se podia prever um futuro promissor. Era habitada,
já naqueles tempos, por pessoas boas, de paz e imensamente trabalhadoras.
Comentava-se também que nesse interior e nos municípios adjacentes, havia um
povo saudável, que já praticava uma agricultura bastante voltada para
tecnologia diversificada.
Quanto
ao torneio, havia sido decidido pela comissão organizadora, devido ao grande
número de participantes, que as partidas seriam mais curtas em fases distintas
de 15 minutos para cada lado, procedendo-se assim, no sistema mata-mata.
Quando
deram início à primeira partida, Nino foi surpreendido com a presença entre os
torcedores, de uma garota de beleza incomum, acompanhada de uma garotinha.
Vestia uma blusa alaranjada e minissaia azul escura, deixando à mostra um
belíssimo e bem torneado par de coxas, o que constituía uma atração à parte
para os inócuos, mas concisos observadores. Seus cabelos longos eram pretos e
lisos, o que contrastavam com a cor da pele quase exageradamente clara.
Nino
tomou coragem e, aproximando-se cautelosamente da garota, como quem nada quer,
perguntou:
-
Eu não conheço esse time da camisa azul, mas já simpatizei com ele. Me informe,
por favor, o nome dos jogadores, pois quero ajudar você a torcer.
Foi
quando a moça foi efusiva e respondeu.
-
Esse número sete é o Julinho que trabalha para o papai. Quero dizer, na
colheita de uvas. Exatamente no momento em que Julinho aplicava um mágico
balãozinho no adversário, Nino aproveitou para vibrar, dando saltos para cima,
acompanhando a menina.
-
E como é o nome do goleiro?- Perguntou
ele. O rapaz defende muito bem.
-
Esse é o Argeu.
-
E você como se chama? - Perguntou ele, quando a garota fingindo não ouvir,
retrucou:
-
O que? Ah, me chamo Clementina, - com um maravilhoso sorriso nos lábios.
Foi
a partir daí, que as perguntas do moço tornaram-se mais insistentes.
-
A senhorita, mora aqui mesmo, ou nas imediações?
-
Não! Não moro. Quer dizer, meus pais e minha irmãzinha moram aqui perto,
aproximadamente uns 36 quilômetros.
Foi
nesse momento que o time para qual menina torcia levou um gol, exatamente
quando aconteceu a troca de lados.
Então,
o rapaz passou a acompanhar a moça que se deslocava para a outra goleira,
instante em que ela tomando iniciativa, perguntou pela primeira vez:
-
E você, mora em Carazinho? Como se chama?
-
Meu nome é Manoelito Dominguez de Mantoya, mas pode me chamar de Nino. Sou
agricultor e moro no interior de Não-Me-Toque. E essa garotinha ao seu lado,
quem é?
-
Ela se chama Hilda, é minha irmãzinha caçula, tem oito anos. É também minha
afilhadinha. Ah, a cidade de Não Me Toque eu conheço, estive lá um dia com
papai. É uma bela cidadezinha, tem uma praça, “ai mio Diu”, é demais.
Finalmente
o jogo acabou e ele a convidou para que o acompanhasse até a sombra de uma
árvore frondosa próxima, a fim de conversarem melhor. Entretanto, lá chegando
Clementina recusou-se a sentar, com a seguinte exclamação.
-
Aqui na grama não me sento.
Virando-se
para a criança, disse: Hilda de uma corridinha até a caminhonete e apanhe um
pelego grande e o traga para nós.
Enquanto
a menininha obedecia, correndo na direção indicada, Nino, mesmo à distância
percebeu que se tratava de um veículo semi-novo, vermelho e branco, marca Rural
Willians.
Mais
tarde, sentados sobre um pelego branco Nino aproximou-se tanto que ela a
princípio procurou esquivar-se, pois estavam apenas alguns centímetros um do
outro. Entretanto, dado a insistência do rapaz, a garota acabou concordando.
Enquanto isso, a menininha sapeca, indiferente aos dois, corria de um lado para
outro, tentando inutilmente subir na árvore gigantesca.
Nino
se divertia demais com as travessuras da menininha. Em determinado momento
chamou a garotinha.
-
Hilda venha aqui. Pegue esse dinheiro, minha querida, vá até a copa e compre
três gasosas para nós, sendo uma para você, uma para sua mana querida e
madrinha Clementina e outra para mim, e com o troco compre balas e doces.
A
menininha retirou-se correndo, deixando os jovens à sós. Era tudo o que Nino
queria já totalmente apaixonado pela moça.
Então,
Clementina tomou a iniciativa e começou a contar:
-
Eu saí daqui da colônia, há mais ou menos oito anos, quando essa minha
irmãzinha, ainda não havia nascido. Agora só volto em períodos de férias para
visitar minha família e rever a "terrinha" natal. Desde que fui
embora moro com minha tia na região de Porto Alegre, ou mais precisamente na
cidade de Canoas, onde estudo o curso Científico e estou me preparando para a
faculdade de Medicina.
Enquanto
ouvia atentamente a explanação da moça, o rapaz se encantava cada vez mais,
pela doçura de suas palavras, pela meiguice de seus gestos e com o sorriso dela
ao pronunciar palavras que o fascinavam. Eram frases que atingiam seu coração
alojando-se dentro de sua própria alma.
-
Que idade você tem? – Perguntou ele
-
18 anos. Mas nunca tive namorado, pois minha tia, a exemplo de meu pai tem
muito preconceito quanto à raça, mesmo que sejam pequenos traços negros ou
indígenas. Eu, entretanto, estou muito bem impressionada com você, embora, me
desculpe, seja um colono caipira. Mas, não importa o que papai e titia podem
achar, pois para tudo neste mundo existe solução. Você, meu querido, pode se
tornar meu primeiro e único amor.
Na
próxima terça-feira, irei cedo para Carazinho, a fim de tomar o trem para Santa
Maria. Lá titia estará me esperando para seguirmos juntas, no dia seguinte, em
seu Aero Willians até Canoas. Quero que você me aguarde na rodoviária de
Carazinho, pois sinto que já estou começando a amar você.
Quando
o relógio de pulso de ambos marcava 19 horas e o sol começava a declinar no
horizonte, completava 4 horas interruptas de carinhos, carícias troca de
olhares e promessas de amor eterno. Era como se para eles o tempo tivesse
sumido no espaço, em apenas um piscar de olhos, quando nada mais poderia se opor.
Nem mesmo a beleza dela, contra a rusticidade, apesar da autenticidade, dele.
Nem os cinco anos mais jovem dela, nem a estatura dela, de 1,76 m, contra o
1,80 m dele. Ou, nem mesmo os cabelos sedosos e finos dela, contra os cabelos
duros negros da raça índia dele. À primeira vista, as juras de amor entre eles,
conseguia apagar o suposto preconceito pobre e vergonhoso, do pai da moça, para
com a raça e origem de Nino.
O
rapaz, entretanto, não acreditava no que estava acontecendo quando se pos a
imaginar:
-
Será que meus sonhos de menino e rapaz humilde da roça estão se concretizando?
Então,
ele revelou à garota ter 23 anos, e possuir no sangue a cruza de índio
caingangue por parte das duas avós e miscigenação portuguesa por parte dos
avôs, mas principalmente espanhola.
Enquanto
o jovem falava sem parar, a culta e estudiosa garota cheia de curiosidade
escutava atentamente sua explanação. Contou ainda o rapaz, meio emocionado, já
não contar mais com o convívio de seu pai, que o havia deixado prematuramente e
partido para outra dimensão. Neste instante Clementina se emocionou e deixou
rolar uma lagrima em sua face encantadora. O rapaz tirou um lenço de seu bolso
e enxugou carinhosamente seus belos olhos.
-
Sabe, querida, eu tenho mais de uma dezena de irmãos, entre homens e mulheres.
Moro com minha mãe e, modéstia à parte, sou muito trabalhador. Meu principal
hobi é ler livros, revistas e jornais, além de escutar bons programas
radiofônicos e, esporadicamente, ir a cidade assistir bons filmes. Apesar de
ter aparentemente uma excelente compleição física eu me considero, de todos os
meus irmãos, não sei por que, o mais emotivo, o mais frágil, o mais feio, o
mais sentimental. Tive algumas namoradinhas, tanto da roça quanto da cidade,
mas em momento algum me apaixonei. Continuando ainda:
-
Mas hoje, meu anjo da guarda me conduziu até este aprazível local onde acredito
ter encontrado minha fada encantada de olhos azuis. Essa boneca, com toda
certeza é você, Clementina.
Nesse
momento, ouviram os gritos da menininha:
-
Vamos, Clementina, vamos! Mamãe está chamando.
Levantando-se
os jovens, caminharam de mãos dadas em direção ao carro da família dela. Na mão
esquerda, Nino carregava o pelego branco que servira de assento para o casal de
jovens, durante toda aquela tarde memorável.
Ao
chegarem, a moça apresentou o rapaz para seus pais, o qual se dirigiu
primeiramente à mãe da garota.
-
Muito prazer minha senhora! Nino. Quando dona Lúcia, com sensibilidade,
respondeu:
-
Tudo bem moço.
Entretanto,
quando se dirigiu ao pai da moça, dizendo:
-
Tudo bem, senhor?
O
homem fechou a cara, como se algo que havia ingerido, estivesse lhe fazendo
mal, lhe negando, inclusive um cordial e educado aperto de mão. Nino, então
procurou lhe entregar o pelego que transportara, o qual foi arrebatado de suas
mãos com uma fúria incontrolável.
Enquanto
isso, a Sra. Lúcia e Clementina sorriam disfarçadamente para o rapaz, com a
visível intenção de amenizar a situação.
Nino
então se despediu de ambas com um sorriso nos lábios, e um discreto “tchau”,
enquanto dava um leve e carinhoso toque de mão na cabeça de Hilda.
No
caminho de retorno para casa, o motorista, com uma ponta de inveja, falou:
- Felicitaciones muchacho. Quieres decir que hoy
agarrastes el mayor y mas bello pez del
Rio Uruguai?
-
Não só o mais bonito peixe do Rio Uruguai, como também do mundo inteiro –
comentou o Sr Mário, - pois na realidade é uma “bella ragazza”. Parabéns
“veio”.
Ao
chegar à noite, já em sua casa, o rapaz com de costume e conforme seu senso de
discrição, nada contou para sua mãe e para seus irmãos, dormindo logo a seguir
em um sono profundo até o cantar do primeiro galo.
Ao
acordar começou logo a pensar em Clementina. E, quando pintou a barra do dia,
estava Nino pronto para mais um dia de trabalho árduo; arrancou mandioca,
colheu abóboras, carregou o carroção, duas ou três ou mais vezes, sem tirar da
memória a sua deusa encantada. Com a junta de bois, transportou tudo até o
galpão próximo à sua casa.
No
dia seguinte levantou-se novamente cedo, já com a Estrela Dalva no horizonte,
deu a ração para os animais: porcos, cavalos, e principalmente os bois de
canga. Depois, pegando a toalha, sabão de soda, dirigiu-se ao riacho nos fundos
do potreiro, onde se banhou nu, assim como Deus o fez. Em seguida, após tomar
café, mentiu à sua mãe, que precisava ir para a cidade, onde teria um
compromisso sério no Banco do Brasil. Vestiu uma bonita calça, camisa esporte,
esta adquirida da Hermes Macedo através do reembolso postal. Depois calcou seu
melhor sapato, também esporte, passou brilhantina nas “melenas”, colocou água
de cheiro, mais o moderno desodorante de forma rolon nas axilas. Saiu na
estrada geral, onde tomando o ônibus de seu Augusto e sumiu na poeira em
direção à cidade.
Chegando
à rodoviária de Carazinho, Nino foi tomado por uma grata e agradável surpresa.
Lá se encontrava como combinado, já à sua espera, sua encantadora Clementina,
ainda mais linda, mais fascinante, mais sorridente e mais cheirosa. Então,
abraçou-a e sobre os olhares desconfiados do motorista, e demais passageiros,
beijou-a com uma paixão incontida. Em seguida, pegando sua mão a convidou para
subirem até a praça principal da cidade, onde poderiam permanecer à vontade,
sem que ninguém os perturbasse.
Nesse
instante, à primeira coisa que Clementina revelou a seu jovem apaixonado que,
naquele dia, estava muito nervosa, pois pela manhã ao encerrar suas férias e
ter que forçosamente voltar à Canoas e ao despedir-se, de sua irmãzinha Hilda,
chorando e aos gritos se agarrou em seu pescoço, pedindo que não regressasse e
permanecesse para sempre com ela.
-
Agora, entretanto, já estou mais conformada e confiante, porque voltei a te
encontrar, meu amor, - revelou a garota.
Ao
caminharem de mãos dadas e ao encostarem ombro a ombro, puderam ambos constatar
estarem com a mesma estatura, isto é, 1,80 m. Porém, mais tarde ele verificou
que a moça estava com saltos altos, deixando-a da mesma altura que o rapaz.
Ao
cruzarem os jovens pelas dependências do Clube Comercial, ele percebeu ao lado
da calçada a presença de dois cidadãos com estirpe de gente “graúda”, que
falando de maneira sigilosa fixaram os olhos na garota. O rapaz, ficou atento,
tentando ouvir o que eles diziam.
-
Mas, que potrancaço –. Falou um deles.
-
E o bumbum, então. Completou o outro.
-
É demais.- Respondeu o primeiro.
Nino
então quase se consumindo de ciúmes e raiva, murmurou baixinho, para que só a
moça pudesse ouvir:
-
Se tem a bunda bonita, não pertence a esses “granputas.” E, se suas pernas são
bonitas demais, a não ser eu, boi nenhum, deste ou de outro mundo, irá lamber.
Foi
quando o rapaz largando por alguns segundos a mão da garota proferiu
carinhosamente três tapinhas sobre as nádegas rígidas dela, a qual sorrindo
mostrou seu agradecimento. Ao subirem pela avenida principal ele pode constatar
a admiração que a garota causava em pessoas de ambos os sexos. Talvez pelo leve
rebolado, beleza facial e física e ainda a elegância com que se vestia a qual
se estabelecia muitíssimo acima dos padrões da época. Ao chegarem na praça
principal, logo vislumbraram, em frente as majestosas torres da matriz. A
menina levando em conta a sua profunda fé católica, falou:
-
Neste instante vou proferir uma oração, para que o nosso amor, que é também o
meu primeiro amor, perdure para sempre. E que também trasponha todas as
barreiras possíveis e impossíveis, inclusive o preconceito vergonhoso e pobre
por parte de meu pai e minha tia, com referência a sua cor e sua origem. Nesta
oração, ofereço todo meu amor e até minha própria vida.
A
moça em silencio curvou-se e proferiu sua prece. Nino permaneceu calado até que
ela encerrasse com muita fé sua oração. Então o rapaz pegou novamente a mão de
sua prenda e deram volta pela esquerda até encontrem um banco onde permaneceram
sentados à sombra de um pé de cipreste. Aquelas próximas duas horas de caricias
e beijos intermitentes, constituíram-se com toda a certeza a prova mais eloquente de um amor puro e
fervoroso. Um romance lindo e também o mais passageiro que se poderia imaginar.
Enquanto
Clementina entre muitos beijos oferecia seu endereço postal para o rapaz, eram
observados de perto por duas madres religiosas, que admiradas se escandalizam e
ao mesmo tempo os ridicularizavam.
-
Escreva-me, por favor. Se minha tia não atravessar, a correspondência chegará
se Deus quiser em minhas mãos.
Nino
ao pressentir que estava chegando a hora de sua namorada partir, sentiu-se
fragilizado. Sua pulsação subiu a mil, e a emoção quase o arrebatou, no desejo
ardente de prendê-la para sempre e engolir o seu próprio perfume.
-
A como eu gostaria de detê-la para sempre me meus braços, minha rainha.
Clementina percebeu rolar algumas gotas
teimosas de lagrimas pela face bronzeada de seu namorado.
-
Não chores meu bugrinho caipira,- falou
ela aos prantos - pois Deus nosso pai, não vai deixar que o mundo se volte
definitivamente contra nós.
Um
apito grave e forte cortou o silêncio da cidade avisando-os que era chegada a
hora da partida. Levantaram-se e seguiram o mais rápido possível em direção à
ferroviária. Antes, porém, pegaram a mala de viagem que Clementina havia
deixado na portaria do Grande Hotel.
Após um breve lanche em uma lanchonete próxima, encaminharam-se com a
passagem dela em mãos até o local onde o trem estava aguardando. Ao chegarem, a locomotiva emitia o último
apito. Despediram-se chorando copiosamente. Ao se beijarem, trocaram juras
eternas de amor. Clementina então tomou das mãos de Nino sua mala e adentrou em
um vagão de primeira classe. O trem partiu e Clementina posicionando-se em uma
janela do lado direito, com lencinho branco na mão, acenava emocionada, mas não
percebendo que as lagrimas teimavam em correr de seus olhos tristes. Os jovens
não sabiam, mas aquele era o ultimo e derradeiro adeus entre eles.
O
trem seguiu em direção a Cruz Alta tomando depois o rumo de Santa Maria. Nino
com seu coração em pedaços, viu sua deusa encantada partir e, ao caminhar
lentamente em sentido oposto ainda murmurava baixinho:
-
Por favor, minha maravilhosa e querida Clementina, não me abandones
jamais. Que esta mesma Maria Fumaça que
a está levando, um dia bem próximo, a traga de volta para mim.
À
tarde Nino passou sentado em um banco da antiga rodoviária aguardando o horário
de seu ônibus, que o levaria para casa. Em certo momento encontrou-se com um
velho amigo de infância, que era também músico e que lhe fez companhia.
Sentados em uma mesa de um bar próximo consumiram alguns refrigerantes (soda
laranja), enquanto relembravam os velhos tempos. Quando se aproximou o horário
de seu ônibus, Nino foi mais uma vez surpreendido, pois de um momento para
outro surgiu Alcino, o motorista do caminhão que o levara para o torneio de
futebol. Este lhe ofereceu uma carona, até a encruzilhada que o levaria à sua
casa. Estava acostumado a fazer aquele trajeto mesmo à noite, tanto à cavalo
como a pé. Embarcaram no caminhão, mas resolveram mudar o rumo, dirigindo-se
para as dependências da sociedade Hípica Carazinhense (a maior e mais moderna
cancha reta do Brasil, da época). Ambos
eram sabedores que naquela tarde estaria sendo disputada, não se sabe por que
razão, a decisão de um importante clássico do Jóckey Clube.
Ao
término da competição permaneceram por mais algumas horas no local. Haviam
encontrado alguns amigos, muita charla e o chimarrão que corria solto de mão em
mão, com uma conversa bem animada, o que fez Nino esquecer-se por alguns
momentos de sua querida Clementina.
Quando
se aproximava das 22 horas pegaram o caminhão e efetuaram o caminho para casa.
Ao deixarem a cidade, seguindo o rumo de Não Me Toque, confrontaram-se com a
zona do Meretrício, onde perceberam o grande movimento de carros no
estacionamento, destacando-se alguns veículos de luxo em frente a uma
empolgante boate. A curiosidade tomou conta de Nino que tomou a decisão de
pedir a Alcino que parasse o caminhão, a fim de verem o motivo de tanto
movimento. Após refletir um pouco o outro resolveu aceitar o convite.
Ao
entrarem, foram recebidos por um cidadão que batendo em seus ombros, convidou:
-
Fiquem à vontade, moços.
Nino
e Alcino sentaram-se em uma mesinha vaga, próxima à portaria. Quando um garçom
se aproximou, Nino pediu:
-
Duas doses de uísque, por favor- O que
Alcino prontamente se propôs a pagar.
Enquanto
conversavam perceberam a presença de muitos cidadãos da alta sociedade local.
Entre eles, dois jovens jornalistas da capital do estado.
A
música ao vivo era executada por uma orquestra de composta de nove renomados
músicos da região. Entre eles, um famoso acordeonista muito elogiado pelas
bandas de Soledade, mas agora erradicado em Carazinho. Outro era um saxofonista
de Não Me Toque, considerado por muitos como o maior instrumentista daquele
gênero do Rio Grande do Sul. Nino assistia empolgado aquela belíssima atração
musical do mais alto nível, quando aproximou-se de onde eles se encontravam uma
jovem moça loira e de cabelos encaracolados que o convidou para dançar. O rapaz
não hesitou e seguiram para a pista. Após os primeiros passos percebia-se a
harmonia do casal, como se fossem acostumados a dançar juntos já há muito
tempo. A música, um velho samba chamado Madureira Chorou empolgava com seu
ritmo forte e cadenciado, originado das plagas cariocas.
Quando se encerrou o jovem par foi alvo de uma
calorosa salva de palmas. Então, o tango “Adiós Pampa Mia,” mais o samba
“Palpite Infeliz” fez com que muitos casais adentrassem na pista. Ainda abaixo
de aplausos, Nino e seu par desfilaram na pista em grande estilo ao som do
bolero Cerejeira Rosa.
A
jovem dançatriz contou a Nino chamar-se Marylin Klein, sendo natural de
Possadas na Argentina. Entretanto, aos treze anos de idade, fora trazida ao
Brasil e desde então adotara essa nação como sua nova pátria. Erradicou-se em
Novo Hamburgo, onde nasceram seus pais e onde ainda moraram seus avós. Contou
ter participado de muitos concursos de dança, inclusive balé clássico. Havia
abandonado o curso de odontologia, a fim de dedicar-se exclusivamente à dança.
Estava hospedada em um hotel da cidade, o que era comum, pois passava a maior
parte de seu tempo viajando e dando shows como dançarina em importantes casas
noturnas das grandes cidades.
Após
executar sozinha alguns passos mágicos de dança, para o deleite de Nino e dos
espectadores, ela aproximou-se novamente do rapaz.
-
Que dozinho ter de abandoná-lo agora. Se dependesse exclusivamente de mim e não
fosse meu compromisso com o trabalho, passaria a noite inteirinha dançando
somente com você. Tchau meu negão. Deus te cuide.
Foi
então conduzida por um segurança para outro local do referido bordel.
Nino
consultando seu relógio, constatou já ter passado da meia noite. Procurou pelo
companheiro Mas não mais o encontrou. Seguiu rapidamente até o caminhão, que se
encontrava estacionado a poucos metros, onde Alcino dormia debruçado sobre o
volante.
Depois
de acordá-lo, retornaram lentamente até encruzilhada, de onde Nino deveria
seguir por suas próprias pernas. Aproximava-se da uma hora da madrugada e o
rapaz ainda precisava caminhar por uns bons onze quilômetros. A noite era clara e sob a luz da lua cheia
podia-se enxergar ao longe e contemplar toda a beleza da natureza existente. As
flores, as plantações, capões de mato, sangas, bueiros e pontilhões. Tudo era
lindo ao seu redor sob o efeito da magia do luar. Começou a sentir sono e
apurou ainda mais o passo. Quando ainda estava a uns seis quilômetros de sua
casa, lembrou-se com nostalgia de Clementina.
-
Mas e a minha linda boneca, por onde andará? Com certeza pernoitando lá em
Santa Maria (cidade coração do Rio Grande).
Então
lembrou-se que no dia seguinte ela deveria tomar o automóvel “Aerowils” de sua
preconceituosa tia, rumando para Canoas. Pensava, em sua solidão, que sua
Clementina era mais linda e atraente do que a própria Maria Tereza, a
maravilhosa jovem esposa do nosso queridíssimo presidente “Jango”.
-
Talvez, tão linda quanto Marta Rocha, a encantadora baiana que fascinou o
mundo, mesmo com suas duas polegadas a mais nos quadris. Que bom seria se
conseguíssemos através do nosso amor, transpor todas as barreiras existentes do
preconceito e eu, enfim, poder contar para sempre em meus braços com a minha
sempre sonhada garota dos olhos azuis. Eu conduziria minha fada encantada até o
riacho e, em uma noite morna e enluarada como esta, não havendo ninguém a nos perturbar,
nos banharíamos totalmente nus e juntinhos, assim como um dia fizeram meus
ancestrais.
No
dia seguinte o rapaz conseguiu executar mais ou menos o mesmo trabalho diário
como era de costume. Muitas vezes, enquanto trabalhava, ficava imaginando a sua
encantadora jovem a convencer a sua quase irredutível tia. Imaginava ela a lhe
convidar para ir morar próximo à sua casa, na cidade grande, onde deveria
trabalhar com muito afinco durante o dia e estudar no período da noite.
Naquele
dia mesmo Nino enviou a primeira carta para sua amada. Mas, os dias
transcorriam lentos e a resposta não veio. Passou a escrever insistentemente,
anexando fotos suas e da paisagem local. Entretanto, jamais foi correspondido.
Nino então começou então em sonhos delirar, ouvindo com frequência em altas
horas da noite, os gritos de sua encantadora menina, apanhando no bumbum com o
chinelo da malvada tia. Esta ao bater-lhe, fazia sua voz ecoar ao longe,
demonstrando em uma sucessão de gritos ensurdecedores toda a sua ira e maldade.
-
Larga este bugre, Clementina! Pois ele é vadio, pé rapado, e vai terminar
influenciando negativamente no seu futuro.
Em
seus sonhos, Nino imaginava Clementina resistindo à fúria da sua diabólica tia.
Mesmo assim, enquanto ele dormia sonhava estar com ela em um capão de mato onde
havia pinheiros, araucárias e tarumãs. Em seu louco devaneio ele a via em um
palco improvisado, coberto de flores de corticeira, construído a partir de
galhos, vestida apenas com uma folha de chapéu de couro amarrado com embira,
com seus belíssimos seios completamente á mostra e um colar construído de
frutinhas de esporão de Galo, e bolinhas
de caité, momento em que um sacerdote lhes declarava, em nome de Jesus, marido
e mulher.
O
rapaz passou a acreditar que tal sonho poderia um dia se transformar em
realidade. Imaginava-se casado com sua deusa e possuir dois filhos; uma
belíssima menina exatamente igual a mãe, recebendo em batismo o nome cristão
Nhandcy Yara de Jesus. O outro filho seria um menino com a pele um pouco mais escurecida,
com alguns vestígios da raça nativa, sendo batizado nas águas claras do arroio
Puitã, com o nome de Andrézito Kayuan Taquary.
Quando
ainda a imaginação lhe permitia, Nino se imaginava com Clementina, e como pai e mãe, poderem, um dia, apresentar
o seu casal de filhos a querida avó Lucia e ao preconceituoso avô Angelo. A
linda guriazinha de olhos azuis, Nhandcy iria apresentar-se vestida apenas com
uma tanga. Já o garoto Andrézito deveria vestir-se com uma farda igualzinha a
que usara um dia o lendário Sepé Tiaraju. Sem chapéu e com uma vincha que
serviria para prender seus prováveis cabelos rebeldes.
O tempo passava rapidamente na vida real, sem
que Nino tivesse notícias, muito menos rever sua idolatrada Clementina.
Trinta
e sete anos mais tarde, quando um dia o cidadão Manoelito (Nino) viajava em
ônibus de linha entre a cidade gaúcha de Passo Fundo a Pato Branco (no sudoeste
do Paraná). Quando o coletivo parou no terminal rodoviário de Erexim, percebeu
uma elegante senhora, que ao desembarcar de um veiculo, adentrou no ônibus e
perguntando pela poltrona 22, exatamente ao lado da sua.
-
Por favor, minha senhora, essa aí é a
sua poltrona. Pode sentar-se. -Falou ele, ao sentir a aproximação da
mulher.
Ao
retornarem à rodovia, Manoelito percebeu tratar-se aquela mulher de uma
requintada dama. A senhora por demais
carismática, era também muito comunicativa. Em dado momento ela comentou que
viera a Erexim visitar amigos e ficando imensamente impressionada com o grande
desenvolvimento daquela cidade. Morava na região de Cascavel, cidade situada no
oeste paranaense, onde trabalhava como funcionária publica. Identificou-se, com
o nome de Hilda e que era natural do Rio Grande do Sul. As longas horas
começaram a transcorrer mais depressa, envolvidos que estavam na conversa
agradável.
-
E o senhor de onde vem? E para onde segue? Como se chama? - Perguntou ela em um
dado momento da conversa.
-
Hoje eu estou efetuando um percurso retroativo, viajando entre o planalto médio
do Rio Grande do Sul e o sudoeste do Paraná. Sou nascido no Alto Jacuí, mais
precisamente em Não Me Toque e me chamo Manuelito Dominguez de Montoya.
A mulher permaneceu estática por alguns
instantes.
-
Este nome não me é estranho e constitui-se quase como da família, - falou ela
após meditar por alguns segundos. - Então o senhor quer dizer ser o mesmo Nino,
que um dia foi o primeiro e mais apaixonante amor na vida de minha irmã
Clementina?
Manuelito
permaneceu por mais de um minuto em sua perplexidade. Boquiaberto, duvidoso,
pasmado ficou imóvel, como se uma flecha lhe tivesse atingido o coração.
Respirou fundo, puxou o fôlego mais de uma vez. Enfim, criou coragem para então
voltar a propor para a tagarela e comunicativa senhora:
-
Pode continuar senhora Hilda.
-
Pois Clementina quase sucumbiu de amor por você e sofreu demais naquela
oportunidade. Comenta ainda hoje que só não conseguiu alcançar seus objetivos
amorosos, devido a profunda teimosia e insensatez, tanto de nossa tia como
também do papai. Eu ainda era mocinha, talvez nos meus dezesseis anos, quando
Clementina formou-se em medicina. Inicialmente passou a trabalhar em cidades do
interior gaúcho. Porém, mais tarde transferiu-se para São Paulo, onde exerce
até agora a profissão que escolheu. Hoje é uma mãe carinhosa e uma avó coruja.
E
a Clementina, ainda se conserva nova depois de trinta e sete anos? Perguntou
ele.
-
Ah sim. Ela continua muito bonita – respondeu a senhora–. Clementina sempre
teve um carinho todo especial pelo próprio corpo e, mesmo com o decorrer do
tempo, o avanço dessas sofisticadas academias, favoreceu muito a boa forma
dela.
Ao
chegarem ao ponto de desembarque Nino, continuou a ser solicito para com Hilda,
e despedindo-se educadamente e com elegância, se salientou:
-
Muito obrigado senhora Hilda pelos maravilhosos momentos que juntos
compartilhamos nesta viajem. Acredito que todo esse tempo que dialogamos, foi
curto demais para o prolongado trajeto que percorremos. Para mim passou como Se
fosse um mágico instante. Mais uma vez, muito obrigado. Saiba foi uma
satisfação muito grande ter lhe encontrado após tantos anos. Desejo-lhe que
continue sempre assim, dentro dessa mais pertinaz clareza de pensamentos e
espírito. Muita paz. Felicidade e, quem sabe, um dia ainda possa novamente
encontrá-la.
E
assim, desta maneira ficou depois de trinta e sete anos, completamente
esclarecido o porquê do final daquele lindo e arrebatado romance entre dois
jovens imensamente apaixonados. Ele, (Nino), Manuelito Dominguez de Montoya,
ela, Clementina que por força do destino vieram um dia a cruzar suas vidas. Um
breve instante resumido em dois breves encontros que marcaram para sempre seus
corações. Um último adeus, um beijo carinhoso, o suave rolar de algumas
lágrimas fugidias mantiveram unidas para sempre suas almas.
Hoje Nino, esposo fiel, pai e avô carinhoso
vive distante do mundo que já foi seu. Mesmo não enganjando-se totalmente, na
medida do possível procura adequar-se ao mundo moderno da ciência e tecnologia.
Muitas vezes, em períodos matinais, por entre a companhia mais afetiva de sua
companheira inseparável ao beber um saboroso mate, fica se perguntando:
-
Que rumo estaremos seguindo? Onde estará o meu fim? E, como ele será?
NÃO
ME TOQUE – Miguel Arnildo Gomes
Este
rincão foi domado
Por
braços de imortais
E
nas patas dos baguais
Foi
logo dimensionado.
Entre
mugidos de gados
Até
então sem preceder-se
Começou
a descrever-se
Ao
ouvirem-se de manhã
Logo
depois dos nativos.
Chegaram
a ser incisivos,
Quando
ao galopar sem deslizes
Acautelados
felizes
Seguindo-se
em atropelos
Na
volta do Cotovelo
Ou
de um arroio Puitã.
Nas
tropeadas de alguns bravos
Uma
historia se forjou,
Das
raízes que brotaram
Só
as heranças restaram
Que
o próprio tempo conservou.
Hoje
celeiro de produção
Onde
tem berço e tem tradição,
De
um pioneirismo que se arraigou um dia,
Ao
ventre da terra fez brotar poesias,
Por
onde o eco dos ventos excitou.
Por
entre uma trajetória que não se iguala,
Ao
transpor os anos jamais se abala,
Não
Me Toque nos reflete como um sonho,
Este
nome foi o velho Possidônio
Que
o imortalizou.
Nas
bruacas, em outros tempos.
Guardaram-se
misticismos,
Por
onde nem o próprio enciclopedismo
A
cumprirem-se os fundamentos,
Quando
ao trançarem-se os mesmos tentos
Procurou
se abastecer.
Só
no porvir de um amanhecer,
Ao
fixarem-se as gravuras
Das
mais lendárias figuras
Por
entre o canto dos nativos,
Que
se conservam ainda vivos
Na
imaginação de um povo,
Saudando
o velho, o novo.
E
os que estão para nascer.
Junto
ao fogo de galpão
Em
um tom bem compassado,
Lembram
Capitão Bernardo
Homem
bom e humanitário,
Criador
e proprietário
Da
Fazenda Bom Sucesso,
Que
sem ficção e sem versos
Chegou
a ser contemplado,
Enaltecido
e elogiado
Pelo
próprio imperador,
Por
ser taura de valor,
Pelo
grande brilhantismo
E
pelo exemplo de civismo,
Em
tempos que lá se vai
A
Não Me Toque voltava
Onde
a família o aguardava,
Quando
estancieiro e comandante
Regressava
triunfante
Dos
campos do Paraguai.
Nem
mesmo a tropilha dos anos
Conseguiu
mudar os fatos,
Pois
ainda se ouvem os mesmos relatos
Quando
ao usar-se de um só conceito,
São
contados do mesmo jeito
Sem
mudar nem o mentor.
É
o povo herdeiro e seguidor
Que
sem vacilar a um só momento,
Apóiam-se
em ensinamentos
De uma doutrina cristã.
É
o próprio agricultor,
O
homem trabalhador
Que
sem ouvir um só estalo
Segue
no mesmo cavalo
Quando
muito se aprimora,
Gente
de ontem e de agora
De
uma geração que se adianta,
Que
ao seguir se agiganta
Rumbeando
para o amanhã.
A
imaginação me faculta
E
ao senhor do céu proponho
Para
que o velho Possidônio
A
esta terra retornasse,
O
seu Não Me Toque renasce,
Ou
mesmo renasceria,
Onde
a própria idolatria
Daria
luz aos pirilampos,
Na
placidez dos verdes campos
Desabrochariam
as flores,
No
rincão de seus amores
Voltaria
a ser feliz,
Para
que rebrotasse a raiz
A
estabelecerem-se mais os elos,
A
seguir no paralelo
Da
honradez e lisura
Junto
a indústria e a agricultura,
Mas
que a bela jacutinga
Volte
a gritar nas restingas,
Nas
manhãs primaveris.
Os
princípios foram um só
Ao
ser provindo de um mesmo som,
Ao
brotar da seiva da mesma canção
E
ao buscar-se também o mesmo ideal,
Ao
lembrar-se Schimitt, Graeff, Otto Sthal
E
outros tantos egrégios da história,
De
um passado sem jaça e de glória
Onde
sempre irradiou alegria em viver,
Quando
movidos pelo bem querer
Numa
hora sublime e de graça
Ao
surgir a mistura de raças,
A
tornarem-se firmes, coesos e completos,
A
unirem-se pelo mesmo dialeto
Ao
saudarem-se ao amanhecer.
No
alicerce do passado
Onde
sotaques se fundem
Aspirações
se correspondem,
Ao
atingir um só nível
Pela
razão infalível,
No
sonho de antiguidade
Onde
resplandece a claridade
A
perpetuar-se a esta hora,
Nesta
gênese que se aflora
Ao
nivelar-se por cima,
Ao
buscar-se na essência da rima
A
inspiração e poesia,
O
fulgor que se irradia
Sem
rasura ou cicatriz.
Com
culturas diferentes
A
formar-se uma só cultura
Com
arte ou nomenclatura,
Neste
aparato se expande,
Sobre
o seio do Rio Grande,
Não
Me Toque só com zelo,
Pode
servir de modelo
Para
todo o nosso país.
Germânicos,
italianos,
Nativos
americanos,
Africanos,
portugueses,
Espanhóis
e holandeses
E
algumas mais descendências
Que
habitam esta querência,
Mesmo
de longe ou de perto
Onde
citam Coronel Alberto
Como
colonizador primaz,
Que
sempre arraigado e tenaz,
Sem
adorno ou matizes
Ofereceu
diretrizes
Para
todos os que seguiam,
Pra
colônia que nascia
Na
expressão mais comovente,
Foi
a cacimba, a vertente,
A
gota d’água cristalina,
Que
deu força e disciplina
Na
imagem que se assemelha,
Ao
ligar-se a terra vermelha
A
linha do horizonte,
Quando
se embasa na fonte,
O
futuro que se espelha.
Os
viajantes chegaram
Entoando
uma só voz,
Ao
se irmanarem com nó
Imigrantes
que sonharam
Já
no momento se alistam
Como
eternos pacifistas,
Onde
se respeitam os mesmos direitos
Num
preciosismo e sem preconceitos,
Os
campeiros e colonos
A
julgarem-se os donos
Deram-se
as mãos por ai,
A
caminhar lado a lado
Loiras
e xirus irmanados
Com
paz, amor e carinho.
Construindo
um só caminho,
Num
virtuosismo constante
Onde
o agricultor vibrante,
Ao
voltar em novas cargas,
Torna
a terra do seu Vargas
Jardim
do Alto Jaquí.