Em homenagens póstumas ao capitão Pedro Ivo dos Santos
e ao meu amigo, sargento Ricarte Martins de Andrade (parente).
10 de
outubro de 1989. Era uma belíssima manhã primaveril com o sol
surgindo atrás de um capão de mato, onde se podiam ver a distancia alguns pinheiros araucárias, nativos por
excelência, como que pedindo socorro à mãe natureza e ao mesmo tempo implorando
clemência à ambição dos homens em forma de uma súplica, para que a devastação
os tolerasse e que pudessem viverem sãos e salvos, pelo mais prolongado período
existencial possível, proporcionando a humanos e a irracionais, o mais
encantador panorama que só mesmo Ele, o Onipotente, nos pode conceder.
Foi
nesse dia que combinamos com o Sr. Ricarte Martins de Andrade de fazermos uma
visita ao lendário capitão Pedro Ivo dos Santos. Tomamos, então, um ônibus em
Clevelândia, cidade mãe de todas as outras cidades do sudoeste paranaense e
rumamos para o estado mais meridional do Brasil. Pernoitamos em Erexim, a maior
e mais bela cidade da região Alto Uruguai no Rio Grande do Sul, onde visitamos
diversos amigos.
No
dia seguinte, 11 de outubro, véspera do dia da criança, emprestamos um
automóvel, pertencente ao Sr. Francsisco José Canabarro, e seguimos rumo à
cidade de Colorado. Ao chegarmos,
almoçamos em um restaurante e após uma breve visita à casa de um amigo comum,
nos dirigimos à residência do antigo guerreiro. Fomos então recebidos por sua
esposa, a Sra. Helena Ribeiro de Quadros (Nenzinha), a qual nos conduziu ao
quarto onde se encontrava o antigo capitão, que mesmo acamado nos recebeu
festivamente. Apesar de seus mais de 90 anos, constamos sua extrema lucidez.
Após
algumas cuias de chimarrão e “charla” o Sr Ricarte se emocionou, ao ponto de
chorar copiosamente lembrando que fora sargento desse homem, quando lia e
escrevia correspondências, a ele dirigido durante a revolução de 1932.
Aos
poucos eu ia tomando interesse por aquela conversa curiosa entre os dois,
quando, criando coragem dirigi a palavra ao homem acamado:
Capitão,
posso fazer-lhe uma série de perguntas a respeito de seu passado como
guerreiro? O Sr. promete me responder e não se irritar?
O
capitão sem hesitar, respondeu: pode me perguntar o que desejar e se quiser anotar,
fique à vontade, pois hoje não pertenço a nenhuma facção política e só tenho
compromisso com a verdade.
Tirei
do bolso uma pequena caderneta e aproximando-me um pouco mais, para assim poder
satisfazer minha curiosidade.
PERGUNTA: capitão como e em que condições, o Sr.
Ingressou na ex-brigada Provisória do Rio Grande do Sul?
RESPOSTA: aconteceu na revolução de 1923 quando a
princípio não me envolvi, mas logo a seguir fui preso ao me encontrar
trabalhando na Linha Garibaldi. Abrindo picadas e com um terno de bois,
arrastando toras até o estaleiro. Esse era meu ganha pão: trabalhar duro e
ganhar pouco. O Ricarte, com menos de 10 anos, era meu mandalete e se
encontrava no local.
PERGUNTA: qual foi o motivo de sua prisão?
RESPOSTA: a única justificativa, penso eu, foi de ser
filho de um capitão governista e irmão de dois sargentos adversários do grupo
que me prendeu. Um deles, o Péricles, a menos de 60 dias após minha prisão, foi
covardemente assassinado, por motivos nunca esclarecidos.
PERGUNTA: e, após sua prisão, o que aconteceu?
RESPOTA fui conduzido ate às proximidades de Vista
Alegre, onde eu residia. Foi quando meu patrão (Sr Tonico Scheleder de
Quadros), que era gente deles, e ferrenho maragato, interferiu a meu favor e fui
finalmente liberado.
PERGUNTA: qual seu destino a seguir?
RESPOSTA: fiquei muito incomodado e então fui à Santa
Bárbara do Sul, onde me apresentei ao coronel Victor Dumoncel Filho (coronel
Tutucho), comandante do primeiro corpo provisório da brigada militar, na
revolução de 1923 (força governista). Deixei na ocasião, de participar ao lado
de meus irmãos nos combates do Desvio Giareta e Fazenda Quatro Irmãos. Na
condição ainda de paisano, entretanto, ajudei a defender o “Sobrado”, naquele
ano de 1923, contra um ataque inesperado de um esquadrão de maragatos de
Palmeira das Missões. Foi provavelmente gente do Leonel Rocha, que atacou nosso
depósito de armas e munições.
PERGUNTA: na condição de graduado, quando aconteceu
sua primeira ação?
RESPOSTA: a minha primeira participação, aconteceu em
1924, como Primeiro Tenente compondo o 18º Corpo Auxiliar da Brigada Militar
também sob o comando do Coronel Victor Dumoncel Filho (Tutucho), no combate do
Capão da Ramada, município de Palmeira
das Missões, em confronto com a Coluna Prestes. Fiquei sob fogo cruzado durante
um dia inteiro. Foi, na realidade, uma batalha de “arrepiar”, onde perdi vários
amigos. O pessoal de Prestes, praças e oficiais do exército eram muito valentes
e preparados, sabiam usar o terreno e bem entrincheirados nos atiravam com
mosquetões e fuzis-metralhadoras.
PERGUNTA: o Sr. pode nos contar mais sobre o Combate
da Ramada?
RESPOSTA: devido à minha idade (quase 100 anos), não
tenho mais facilidade de recordar datas, mas lembro-me que foi no ano de 1924. Aconteceu
em uma tarde de chuva fina. Nosso pessoal meio receoso estava indeciso de
continuar a luta, talvez devido aos muitos companheiros feridos e mortos. Tomei
então a iniciativa e, indo até o comandante, falei: coronel, mande alguém que
tenha mais representatividade para a linha de tiro, pois nossos homens parecem
estar com medo e só procuram se proteger. Então, o coronel Tutucho, chamou um
oficial, meu superior e lhe ordenou que fosse para a linha de tiro, a fim de
dar moral à tropa.
Foi quando, para nossa surpresa, vimos surgir o major
Campos Borges montando seu lindo tostado pangaré com um nó no rabo, galopando
de um lado para ouro, cortando terreno e dando vivas ao Dr. Borges de Medeiros,
que era nosso governador e líder político. Aquele ato de coragem do major foi
um estopim que acendeu tudo, pois nossa gente gostava demais do governador.
Começaram então a desferir a maior chuva de balas contra os revoltosos que não
suportando o contra ataque, logo começaram a debandar. O mais engraçado,
entretanto, é que após esse acontecimento, fiquei sabendo que quando o major
entrou na linha de tiro, como um louco, dando apoio aos gritos e fazendo seu
cavalo virar de um lado para outro, e saiu daquela situação sem ser atingido.
Mesmo seu cavalo sofreu apenas alguns riscos de balas. Nosso coronel Tutucho que
já era cancheiro velho, também em tom de brincadeira aos gritos bradava: “te
cagou fiho da puta”,
Prestes foi retirando sua tropa em direção ao Rio
Uruguai. Mas, deixou uma coluna lutando contra nós, aos quais conseguimos
causar muitos estragos. Anos mais tarde, descobri que aquela coluna obedecia
aos comandos dos tenentes Osvaldo Cordeiro de Farias, o mais jovem oficial da
coluna, e Portela, este último, morto dias mais tarde ao cruzar o mesmo Rio
Uruguai.
PERGUNTA: capitão, contaram-me que seu pai também participou
do combate da Ramada. Isso é verdade?
RESPOSTA: sim, meu pai, capitão Avelino era veterano
de 1893. Em 1924 foi convidado a capitanear um esquadrão isolado, obedecendo apenas
ordens do coronel Tutuxo. Sempre protegia a retaguarda, tarefa que 1932, coube
a mim, quando eu tinha o Ricarte como sargento.
PERGUNTA: capitão é verdade que em 1923, o Sr. prendeu
o José Brizola pai do ex governador Leonel Brizola?
RESPOSTA: sim. O José Brizola, mais conhecido com “Bejo”,
na realidade era nosso adversário político, declaradamente Maragato, inimigo
pessoal do coronel Tutuxo. Coube mim, na companhia de três soldados, ir até sua
casa, lá na Cruzinha e, se ainda estou lembrado, foi no amanhecer do dia 11 de
outubro de 1923. Entretanto, ao chegarmos, quando já pintava a barra do dia,
ele não se encontrava. Em casa se achavam apenas sua mulher e os filhos. Quando
pedimos pelo “Bejo”, ela se negou nos dar informações.
Todavia, se encontrava na residência um rapazinho, que
acreditei ser amigo da família, o qual assustado nos informou que seo “Bejo”
havia saído no dia anterior. Mas, que havia prometido que naquele dia, até às
10 horas, estaria de volta. Escondemos nossos cavalos em uma varanda de
carroças, que se posicionava atrás de um pequeno galpão. Permanecemos alerta e
quando se aproximava o meio-dia, ele chegou. Dei ordem de prisão sem que ele resistisse,
e sem amarrá-lo, o conduzimos a Santa Bárbara. Passados alguns dias, o coronel
mandou chamar a Oniva, mulher do “Bejo”, que compareceu com as crianças para
verem o pai pela última vez. Lembro bem, que ela lhe entregou um maço de
cigarros, e enquanto conversavam a sós, por um bom tempo, ele fumava sem parar.
PERGUNTA: o que eu quero realmente saber, capitão, é
como aconteceu a morte do “Bejo” e quem foi o autor?
RESPOSTA: pois é, depois quando alguém se dirigiu ao “Bejo”
e perguntou se já havia conversado o suficiente com a mulher, ele, como homem
de coragem rara, foi categórico e respondeu que sim. Foi então conduzido por um
sargento, cujo nome não me recordo, para um local próximo, junto a um pé de
laranjeira onde então foi assassinado com um tiro de mosquetão. O fato aconteceu
em minha presença, o que muito me revoltou. Deixei passar uns tempos e depois
reclamei para o coronel, fazendo-o entender, que se eu soubesse que seria para
matar o José Brizola, eu desobedeceria a suas ordens e não o teria prendido. O
coronel que era meu comandante e melhor amigo, me respondeu: “eu sabia mesmo
que você é nervozinho”.
PERGUNTA: como sabemos, no dia 15, do próximo mês,
haverá eleições para presidente da República e o filho mais jovem de José
Brizola (Bejo) com a Oniva, Leonel de Moura Brizola, depois de sofrer o amargor
de muitos anos de exílio, volta a ser candidato, agora a um cargo majoritário,
ou seja, o de Presidente da nação. O Sr seria capaz de votar nesse desprendido
homem público?
RESPOSTA: nem sou capaz, como também votarei, a fim
unir forças contra as oligarquias deste país, pois o Brizola trata-se de um
homem correto, nunca “deixando o rabo” para alguém pegar. Enfim, ele é um homem
de princípios. Como sou analfabeto e nunca tive direito ao voto, agora com essa
nova lei, vou conseguir votar e tem que ser no Brizola. Quando olho para os
lados, para a frente, e não vejo mais ninguém, só então percebo que o último
caudilho não foi o José Antônio Flores da Cunha, muito menos Onório Lemos, mas
sim, vejo o Sr Leonel Brizola como último caudilho e último grande homem
público que restou dos políticos de nossa terra.
Obrigado
capitão pela entrevista. Falam tanta “balela” por aí, sem que eu consiga
entender coisa alguma. Hoje ganhei o dia, a viagem e muito mais. Estou
realizado. Mais uma vez, obrigado.
Miguel Arnildo Gomes
Clevelândia, Dezembro de 2012.