terça-feira, 18 de março de 2014

História - Um bugre maragato

UM BUGRE MARAGATO

Miguel Arnildo Gomes

Era um domingo, véspera de carnaval do ano de 1952. O dia apresentava-se extremamente chuvoso, mas nada que pudesse impedir as festividades comemorativas, pela abertura da nova capelinha de São Roque. Naquele aconchegante recanto afastado a 15 km da Paróquia de Cristo Rei de Não Me Toque – RS, onde centenas de fiéis católicos se aglomeravam, para participar das festividades alusivas a inauguração do referido e modesto templo. Eram na sua grande maioria, famílias de arraigados agricultores e criadores, que faziam exclusivamente do amanho a terra, plantio e colheita, o seu único e incontestável meio de sobrevivência, quando além do sustento da própria família, ainda decididamente colaboravam com seus produtos agrícolas mini pecuária para o abastecimento dos pequenos, médios, e principais centros consumidores. Fastimilhano José dos Reis há este tempo já era um cidadão cinquentão, pessoa radicalmente humilde e pobre e que casado já há quase 30 anos com Isabel, sua eterna namorada, jamais durante a vida conjugal tiveram filhos ou possuíram alguns bens de capital. Talvez um pequeno cãozinho guaipeca ou totó como se dizia, mais uma gatinha que Isabel a chamava carinhosamente como Mitia. Também jamais em sua vida, este referido senhor fora chamado pelo próprio nome, pois para todas as pessoas que o conheciam, indistintamente era conhecido apenas como Fastimiano ou Bugre. Isabel levando-se em conta seus cabelos caracolados, talvez pela semelhança a lã de ovelha, dava-se então o apelido de Bequinha ou Beca.
Fastimiano e Beca não possuindo moradia certa ou particular, residiam no próprio local de trabalho, onde munidos de machado, foice, serrote, mais enxadas, pás, cunhas e facão, além de abrir roças, eram especializados em preparar tabuinhas para cobertura de casas e galpões.
Era um casal extremamente carismático, denotadamente amados, muito principalmente pelas crianças. Sempre morando a beira do Arroio Cotovelo, mais para cima, ou mais para baixo, na margem direita, mais muito principalmente na margem esquerda.
Quem não se dispunha na época em ceder uma pequena casa, para que o Fastimiano e a Beca, por algum tempo pudessem fixar suas residências. Pois eram eles, compadres de muitos outros casais de agricultores e proprietários rurais, com quem conviviam na mais perfeita paz e solidariedade humana. Fastimiano mesmo ainda correndo em suas veias o sangue congênito, jamais foi seguidor da cultura nativa de seus avós, os quais acreditavam piamente em Nhandcy (a sua mãe terra).
Quando guiados pela força de Kaiuã (dom da palavra), chegavam ao encontro de Nhanderuvuçu (o seu Deus pai).
Quando ainda encontravam através de seu Pajé, feiticeiro indígena Murubixaba, energia suficiente para implorar a Tupã (a força dos ventos e dos pássaros), para assim poder estar totalmente livre e protegido do furor de tempestades e raios. Fastimiano nem mesmo foi sabedor, que sua cultura religiosa nativa, havia sido arrebatada de seus ancestrais indígenas. Quando os pregadores da companhia de Jesus conseguiram com extrema habilidade, retirar de seus povos, o Deus Tupi – Guarani, para assim poder introduzir entre os mesmos, o nosso Deus branco, como passou a ser chamado pelos nativos.
Ao longo de sua vida, talvez também não foi sabedor que a mesma Santa Virgem Maria, para quem eles tanto rezavam e acendiam velas, fora um dia a igualmente conhecida como Tupancy (Senhora Protetora), para seus avós Guaranis. Fastimiano e Beca, tinham como hábito, visitar diariamente seus amigos e que eram em razoável numero, quando o bugre velho costumava identificar as crianças pelo próprio apelido familiar. Também eram eles participantes ativos de reuniões sociais, quando se vestiam adequadamente, bem como em encontros ligados ao catolicismo em geral e celebrações festivas. Mas como nunca possuíram recursos financeiros suficientes para adquirir um receptor de radio, que na época devido aos elevados custos, constituía-se como uma raridade e restrito apenas para os casais mais abonados. Marcavam-se então presença obrigatória em todas as terças e quintas – feiras, nas casas de compadres e comadres a partir das 19 horas para poder ouvir a musica caipira, gênero musical pelo qual se demonstravam ser extremamente apaixonados, quando estas musicas eram interpretadas ao vivo pelos três famosos batutas do sertão, Torres, Florêncio e Rielli Filho. Isabel, dentro de seus princípios naturalmente hábeis e de extrema paz, procurava viver uma vida unicamente voltada para a agudeza de espírito e profundo amor ao próximo. Enquanto Fastimiano, apesar de sua perspicácia, mesmo a não ser eleitor, em todas as reuniões festivas, denotadamente usava sobre o pescoço um tradicional lenço vermelho, querendo com isso simbolizar o partido libertador, de ideais maragatos e ideologias semeadas entre nós e ao longo da história, pelo tribuno Gaspar Silveira Martins.  Sendo este conjunto de idéias, ainda nos anos 50, passiveis de milhares de seguidores, principalmente no interior do estado do Rio Grande do Sul. No ano de 1952, ainda era o Presidente da Republica o Doutor Getúlio Dorneles Vargas, gaúcho de São Borja – RS, que foi eleito por larga margem de sufrágios em 03 de outubro de 1950. Quando derrotou pelo voto popular (principalmente dos mais humildes), o seu principal antagônico e sempre combativo Brigadeiro Eduardo Gomes da UDN. quando se dizia popularmente na época, que seria este o candidato que representava as três forças armadas. Exército, Marinha e Aeronáutica.
Depois dessa histórica eleição, o imortal presidente Getúlio Dorneles Vargas levando-se em conta sua profunda intrepidez e carisma junto aos humildes, voltava ao poder, agora nos braços do povo. Pois ele já havia governado o País durante 15 anos, a partir de um movimento armado em 1930, quando em 1945 foi deposto por um golpe militar.
Getúlio Vargas também não concluiu seu segundo mandato, quando novamente, não conseguindo suportar tamanha pressão e muito principalmente militar, suicidou-se em seu próprio palácio em 24 de agosto de 1954.
Na tradicional festa de São Roque, que habitualmente se comemora a cada dia 16 de agosto, naquele ano de 1952, dado ás circunstâncias da inauguração da nova capelinha, a mesma foi realizada com grande ênfase no mês de fevereiro, véspera de carnaval. Meu pai e minha mãe particularmente por motivos de luto familiar, não se fizeram presentes naquela reunião comemorativa. Coube a mim na companhia de meu irmão Antônio Carlos e irmãs mais velhas, prazerosamente representar nossa família, naquele ambiente festivo e de cunho significativamente familiar e religioso. Eu me encontrava excepcionalmente feliz naquele domingo chuvoso. Quando passava a chover mais intensamente e ainda a não haver pavilhão no local, o povo se dividia, cabendo as mulheres e crianças a ocupar as dependências da igrejinha, quando então conversavam de maneira imensuravelmente Cortês e em determinados momentos voltavam a fazer suas preces oferecidas a São Roque, o Santo padroeiro e protetor dos pequenos animais. Enquanto isto os homens e jovens de ambos os sexos se aglomeravam nas dependências da escola municipal Tomé de Souza, que se divisava ao lado da referida capela. Eu na ânsia dos meus 12 anos e no afã de ouvir a excepcional musica, procurava mesmo aos empurrões, me posicionar o mais próximo possível, para ouvir um dos mais renomados conjuntos musicais da cidade de Carazinho, a constatar que ali estava pela primeira vez e gratuitamente a banda Fossati que era regida pelo professor Canela, e sobre o comando do proprietário da mesma, o senhor Celeste, quando desta vez também enxertados pelo renomado acordionista, Guri da Constância. Era naqueles tempos um conjunto de ótima qualidade e reconhecidos por qualquer um, mesmo que fosse também eu no momento, talvez imaginado por muitos, assim como realmente era, apenas mais um singelo e insciente conhecedor de teoria musical. Quanto a gêneros musicais, este variava dentro da musica popular brasileira, entre outros ritmos, sambas, boleros, baiões, bem como musicas portenhas e até mexicanas, além de diferentes marchinhas carnavalescas, como foi Chequita Bacana, Taí, Ó Jardineira, Guerra da Coréia...
Mas como naqueles tempos ainda se estava longe de se ter luz elétrica por aquelas bandas, as comemorações festivas eram realizadas em locais impróprios, a não haver lampiões, perdurava-se apenas enquanto houvesse a luz do dia. No entanto, enquanto a noite já se aproximava rapidamente, eu ouvia os chamados insistentes de meu irmão com as seguintes intimações:
“Vamos embora tchê, porque já é tarde demais!”.
Mas, quando nos preparávamos para imediatamente deixar o local, fomos em um momento surpreendidos com um pequeno tumulto localizado, quando percebemos a alguns metros de distancia, um grupo de homens e mulheres caminhando lentamente, com pedidos de:
Atenda-me, por favor, Fastimiano”, enquanto o mesmo retrucava em altos brados:
“Eu não atendo a ninguém, e prometo que pego aquele político meia tigela e raspo o bigodinho nojento dele com o meu facão, porque sou libertador e não abro mão de meus ideais maragatos!”.
Quando ainda continuava o mesmo:
“Eu pego aquele baixinho mentiroso, que só promete e nada faz pelos pobres, em qualquer volta da estrada e viva o partido libertador. E viva o partido libertador!”
Mas num instante aproximou-se do bugre velho o inspetor de quarteirão, senhor Firmiano de Quadros, quando energicamente lhe questionou:
“Mas quem você quer pegar na primeira volta da estrada, Fastimiano, e raspar o bigode? Pois pelo que sei, aqui só tem pessoas boas e de paz”.
Fastimiano a ser efusivo, em momento algum deixou de ser transparente, a sair com mais esta:
“Eu prometo sim, e lagramputa algum me interrompe, porque na primeira volta da estrada eu pego o Getúlio Vargas e raspo o bigodinho nojento dele com o meu facão de lascar tabuinhas”.
Esta foi, portanto, mais uma façanha do Fastimiano, bugre velho, querido por todos, mas por vezes não podia ver bebidas alcoólicas em sua frente porque a tomar todas, se descontrolava totalmente e jogava pelo gargalo qualquer espécie de sensatez, razão e até mesmo antigas e sinceras amizades.
Os anos passaram-se como sempre tão depressa, quando a Bequinha, sua deusa, se foi primeiro, depois o bugre Fastimiano morreu com mais de 90 anos, quando estava internado em um asilo a exemplo de tantos outros, quase esquecido, deixou entre nós, apesar de algumas fraquezas momentâneas e próprias do ser humano, um perspicaz exemplo de ternura e afeto, principalmente oferecidos ás criancinhas que pela transparente impressão deixada entre nós ao longo de sua vida, que ele tanto amou.
Eu acredito e tenho até plena convicção que o bugre Fastimiano, foi apenas mais um entre os milhares de descendentes das tribos guaranis, que habitavam a margem esquerda do Rio Uruguai, região missioneira, conhecida também pelos descendentes espanhois, segundo o historiador Luis Carlos Barbosa Lessa, através de seu consagrado livro Rodeio Dos Ventos, como País Del Tape. Com a catequização dos indígenas, dos Sete Povos das Missões, os nativos guaranis começaram então a perder suas origens ou raízes. Anos mais tarde, com a invasão das missões simultaneamente pelos exércitos de Portugal e Espanha, foram os remanescentes selvagens que restaram dos combates, enxotados do seu habitat natural. Então sedentos e famintos, passaram a perambular pelo continente de São Pedro, em busca de seus antigos hábitos e cultura religiosa. Sonhavam eles, que um dia poderiam retornar em toda a sua plenitude, contando com a força de seu Deus Pai (Nhanderuvuçu) e Mãe Terra (Nhndci), para a terra, as matas e os próprios rios que lhes foram roubados.


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