terça-feira, 18 de março de 2014

Poema - Tostado Malacara

Tostado Malacara
                                                           Poesia Crioula
Miguel Arnildo Gomes


Em um determinado tempo atrás
Comprei um potro tostado
Quando a montar dos dois lados
Nunca me negou estrivo
Mais se parecia um saci redivivo
Um serelepe irrequieto
Pra ser sincero ou correto
Jamais encontrei outro igual.

Mais tarde deixou de ser bagual
A receber castração
Por tornar-se de minha estimação
Também de excepcional valia
Pela imensurável serventia
O amarrei nos tentos do meu coração.

É um cavalo exuberante
O qual não quero diminuir
Junto ao quaro de dormir
Em momentos de ousadias
Fiz a sua estrebaria
Construída com tabuas de pinho
De onde sempre tratei com carinho
O animal que encilho.

Dando-lhe alfafa, aveia, milho
E cenoura por sobremesa
Sem me importar com despesas
Que poderão advir
Pois outro igual, esta por vir
Em toda esta redondeza.

Este animal originou-se
Das raças Crioula e Quartodemilha
Que apartei de uma tropilha
Por ser o mais belo e ostentoso
Nas guampas de um boi barroso
Joguei a primeira armada
Quando o boi em disparada
Cruzou por dentro de um valo.

Eu enriba do cavalo
Me fiz rei neste momento
Já cheio de argumentos
Fui segurando aos pouquitos
Pra depois pregar um grito
Ta preso o bicho nos tentos.

Virei pra frente a guaiaca
Passei os cobres pro dono
Que era um taura com entono
E jeito de gente graúda
Onde sem precisar de ajuda
Efetuei solito a transação
No final desta questão
Que foi fração de um segundo.

Me senti afinal, dono deste mundo
Quando a partir daquele dia
Minha vida passou a ter regalias
Em uma felicidade que a nada se compara
Quando levei a cabresto o malacara
Para morar pra sempre em minha estrebaria.

Jamais conheci outro igual
 Bem ágil mas de extrema confiança
Servindo ate para as crianças
Pra ir ao povoado ou na venda
Buscar alguma encomenda
 Mas sem precisar de retovo.

Comprar um bico pro guri mais novo
Quando a situação nos reclama
Alguns palmos de fumo em rama
Urinol, querosene e Lampião
Dando-nos nítida impressão
Que tudo é a pedido da patroa
Mais um frasco de canha, da bem boa
Pra nós beber com limão.

Quantas vezes que até nem me lembro
Em que venci torrenciais e enchentes
Só pra mostrar pra minha gente
O quanto eu era gabola
Hoje a própria saudade me consola
Não desmerecendo a ilusão de moço
Quando dava tapinhas no pescoço
Agradecendo ao tostado.

A me sentir um herói condecorado
Sem ser agraciado e sem sutilezas
 Quando retornava a correnteza
Para a minha redenção
Sentindo a notória convicção
Onde a própria alma se lava
Em triunfos regressava
São e salvo pro galpão.

Sem fazer comparação
Porque a nada se compara
O meu tostado malacara
É um fenomenal cavalo
Com ele nunca errei pealo
Onde o entusiasmo se agarra
Pealando até de cucharra
E a jogar de sobre lombo
Em tempo algum levei tombos
Em meu trabalho ou na farra.

No rumo da incerteza
É onde o ginete se estampa
É donde a vaidade se acampa
Sem dar um beliscão de espora
Disparando campo a fora
No linear de um arremesso
Onde o cavalo bom tem preço
Onde a verdade não se ignora.

Quantas vidas a mais originou-se
Em que a natureza se propõe e realiza
Onde a Inteligência se notabiliza
A compararmos humanos e irracionais
A confrontarmos somos todos animais
Apenas diferentes na faculdade de entender.

Onde desprovidos da magia do saber
São eles impulsionados pelo poder do instinto
A relinchar quando estão famintos
A pedir rédeas em momentos de euforia
A demonstrar que são passíveis de alegrias
Sempre guiados pela força do instintivo

Até parecem-se com duendes redivivos
Que voltam á tona em plena era espacial
Simbolizados de maneira superficial
Pelo meu Malacara das quatro patas brancas
Com uma mancha tordilha sobre a anca
Numa gravura projetada ao natural

A pressentir éguas em cio
Ainda se assanha o tostado
Por vezes ignorado
Por vezes incompreendido
Radicalmente adormecido
A exercitar a própria peça
Eu já fiz até promessas
Pro nego do pastoreio
Para que o pingo dos meus arreios
Se conscientize de uma vez.

Mas se um dia mil proezas fez
A tornar-se evidente
Que passe a viver o presente
Sem renegar seu passado
Ao não se tornar mal falado
Pela razão fundamental
Ou pelo principio mais cabal
Para que não recobre os tempos de outrora
E passe a viver unicamente os dias de agora
Esquecendo os tempos em que foi bagual.

Quanta china carregou
Na garupa o malacara
Com uma mansidão bem rara
Mas se precisar chomisco
Mais se parece um corisco
Riscando o céu do universo

No resumir dos meus versos
Que dão vazão a minha vida
Volto na mesma medida
Ao assunto mencionado
Referindo-me ao tostado
O meu coração dispara.

Quando com a verdade se depara
Só em pensar que o malacara
Pra sempre não vai viver
Mas o dia em que ele morrer
E se bandiar para o além
Na rudeza do meu canto
Eu suplico a meu santo
E sintetizo na poesia
Que minha vida tornar-se à vazia
E que eu quero partir também.

Caramba, barbaridade
Porque a aflição me invade
Onde a emoção me judia
Seria a maior covardia
Bater num pingo de ouro
Uma relíquia, um tesouro
Que não se compra a revelia
E não se encontra em pulperias.

Por ser de extremo valor
Não se amarra em cabanas
Porque a má sorte é tirana
Traiçoeira e sem compromisso
Podendo até virar feitiço
Nos olhos de uma xirua
Que por vezes se insinua
A querer enfeitiçá-lo.

Por isso que ao amanoncea-lo
O que faço diariamente
Eu peço ao onipotente
Pela fé em que me seduz
Para que o mundo torne-se só de luz
Pela misericórdia do senhor
Para que eu morra na paz e no amor
Para que abençoe também o meu cavalo.


Nenhum comentário:

Postar um comentário