terça-feira, 7 de outubro de 2014

Poesia - A senzala

A SENZALA

Em tempos de cativeiro
Sem querer entrar em choque,
Bem próximo a Não-Me-Toque
Foi criada uma senzala.

Hoje a tradição nos fala,
Hoje a tradição nos conta,
É a história que se remonta
E que nos traduz em versos,
Que na fazenda Bom Sucesso
Ao trançarem-se novos tentos,
Nos anos mil e oitocentos
Já na década de cinquenta,
Um casal se movimenta.

Na ficção de belos sonhos,
Junto à terra de Possidôneo,
Uma vez mais visionários,
Seguindo o itinerário
Ao traçar o rumo certo,
Em matas e campos abertos
Sob o azul deste céu.

Como a ganhar um troféu
Estes dois jovens recém chegados,
A Felicidade e o Bernardo,
Ela mais culta, ele mais rude,
Porém cheios de virtudes
E o sonho se concretiza,
Ao compor-se como divisa,
O rio Colorado e o Cotovelo,
A galopar-se até em pêlo
Pra querer chegar primeiro,
Era a fibra de um guerreiro
E a inspiração de uma poetisa.

A uma milha do mato
Da itinerária brasileira,
Construíram uma mangueira
Com cerca de varejão
Ergueram-se, casa e galpão,
Para que os identifique,
Um rancho de pau a pique
Para abrigo dos cativos.

Quando a ser mais impulsivos
Na ânsia de ser feliz,
Fecundaram berço e raiz,
Plantaram amor e carinho,
Ao longo de um só caminho.

Como dois itinerantes,
Ou dois pássaros migrantes
Na missão que não se finda,
Sem ninguém lhes dar boas vindas
Semearam esperança e paz
No desejo que se faz,
Todos os filhos nasceram
E todos os filhos cresceram.

Se às vezes Bernardo tropeiro,
Outras vezes Bernardo guerreiro,
Felicidade num contexto admirável,
Celebre ou memorável,
Onde a fé não se desaba
A dirigir a família,
Enquanto Bernardo segue na trilha,
Corajoso, persistente,
A enfrentar bugres e enchentes
No reponte a muares,
A respirar novos ares,
Tomando o rumo de Sorocaba.

O dito negro Filadelfo
Foi um taura de valor,
Escravo e também feitor,
Incansável e sem arrenegos
A conduzir outros negros
Em campereadas e no eito,
Destemido e com respeito
A levar sempre na boa,
Só obedecendo à patroa
Na ausência do patrão.

É o Bernardo, o capitão
De guerra ou tropeirismo,
Que com grande brilhantismo
Sobressai-se ou se destaca,
Sempre batendo na marca
Com denodo e ousadia
Certa vez serviu de guia
Pra Dom Pedro até a fronteira,
Conduzindo a bandeira
Ou o brasão do Império.

É o Bernardo, o gaudério,
O devoto de Santo Antônio
O amigo de Possidôneo,
De uma coragem rara,
É o Bernardo sem entono,
Sem julgar-se senhor ou dono
Sempre humilde e bondoso
De coração generoso,
Todavia implorando aos céus
Ao erguer o seu chapéu
Ao cruzar pela capela
Quando um dia se revela
Como imortal tapejara.

Em pousadas ao relento
Em madrugadas sombrias
Noites mornas, noites frias
Capitão Bernardo em vigília.

A lembrar sua família
A dormir sobre pelegos
Quando a recordar seus negros
Da senzala bem distante
É o tropeiro, o comandante
De mil jornadas incertas.

Na sua mente desperta
Por entre o canto dos grilos
Ao lembrar daquele anillo
E com pedras de diamante
Uma relíquia importante
Que presenteou sú señora
Ao recordar nesta hora
Que foi presente de um inimigo.

Que se tornou seu amigo
Depois da brutal peleja
Luta renhida que enseja
A recitar cavatinas
A traçar sobre as campinas
Mas sem pensar em comendas,
Ao lembrar sua fazenda
Sem resenho ou disciplina,
Na encosta do Colorado.

E o cochonilito dourado
Que extraviaram sobre a pista,
Que devolveu pra um antagonista
Ao chegar no arremate,
Daquele cruel combate
La de LomasValentinas.

Simplício foi o negrinho
Na ilação que o sonho embala,
Retirado da senzala
Numa manhã muito fria
Ao sofrer paralisia
Este quadro, Deus o pinte
Foi criado com requinte
Teve paz, teve sossego
Da família teve apego
Como a chegar de outra banda.

Do catre para a varanda
Do rancho de chão pra sala,
Sem muleta ou bengala
Criou-se fazendo arte,
Junto ao mano Dinarte,
Ou ao caçula, o Sinhozinho.
Só com amor e carinho,
Com cuidado e ternura
Subia lá nas alturas
Naquele feito comum,
Pra apanhar araticum
De onde a história se encaminha,
Para trazer para as maninhas
E pra mamãe Felicidade.

Na expressão de bondade
E de feitos extraordinários,
A constar neste rimário
Da mais cabal realidade,
Nesta poesia sem ária,
Que ainda antes da Lei áurea,
Onde a razão se exala,
Aconteceu nesta senzala
Sem custar pacatas ou centavos,
Foi concedida a todos os escravos,
Ampla e total liberdade.

Na senzala se criou,
A notável negrinha Catita,
A flor do campo mais bonita,
De um encanto incomum,
Que fascinava qualquer um,
Por mais que fosse seguro,
Consciente, coração duro.

Pela meiguice e doçura,
Pela beleza e postura
No sorriso belo e franco,
Que ao dar a luz a um filho branco,
Quando o criou com afeto
Ao abrigo do mesmo teto,
Onde Dona Felicidade,
Com honra e dignidade
Decidiu o batizar.

Sem clero e sem altar
Com devoção e um só pealo,
Ao querer homenageá-lo
Com o nome do patrão,
Pediu a Deus proteção
E a Virgem Mãe que o guiasse,
Para que lindo se criasse,
Onde até hoje ainda se fala
Na singeleza do verso,
Que na fazenda Bom Sucesso
Da aprazível Não-Me-Toque,
Sem que haja outro enfoque
Na história que se refaz,
Há muitos anos atrás
Existiu uma senzala.  



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